A CPI dos Pancadões se tornou um retrato fiel de como parte da política brasileira insiste em atacar as consequências e ignorar as causas. Ao invés de discutir por que as periferias seguem sem políticas culturais, espaços públicos e oportunidades, o Estado escolhe criminalizar a cultura popular. O funk e os bailes de rua, símbolos de resistência e expressão coletiva, são transformados em alvos de investigação.
O que se vê nas sessões da CPI é menos uma busca por soluções e mais um espetáculo político. Artistas são tratados como suspeitos, produtores culturais são hostilizados, e o discurso dominante tenta vincular a música e o lazer periféricos a organizações criminosas. Tenta-se construir uma narrativa em que o artista é cúmplice, é criminoso, e não criador de arte.
Essa tentativa de associar o funk ao tráfico é uma manobra perigosa. Busca-se enfraquecer a força social e simbólica da cultura periférica, conectando-a a facções para justificar a repressão. Mas o artista não é responsável por criar o crime. Ele pode relatar o que passa na sua comunidade, na sua vida. A criação tem mais a ver com a omissão do Estado e o combate ao crime é função do Estado. Se há tráfico, violência ou irregularidades nos bailes, isso é resultado direto da presença precária e violenta do próprio poder público. A omissão estatal cria o vazio onde o crime se instala.
Relatar a realidade não é o mesmo que promovê-la. MCs e produtores culturais retratam o cotidiano da periferia, assim como roteiristas e cineastas retratam a violência urbana nas novelas e nos filmes. Por que então os autores de novelas não são investigados? Por que os roteiros de cinema, que exploram os mesmos temas, não viram alvo de CPI? A diferença está no CEP. Quando a arte nasce na periferia, ela é criminalizada. Quando nasce na elite, é premiada.
Os bailes de rua existem porque faltam espaços públicos seguros e acessíveis para que os jovens possam se divertir. A omissão do Estado gera improviso, e o improviso vira resistência. O pancadão é o que sobra quando a cidade não acolhe, quando a cidade não deixa possibilidades. Ele é o reflexo da desigualdade urbana, do abandono e do descaso.
A CPI dos Pancadões não quer resolver o problema. Quer apenas deslocar a culpa. Quer convencer a sociedade de que o perigo mora na quebrada, não na estrutura de poder que mantém a desigualdade. Quer transformar cultura em caso de polícia, quando o verdadeiro crime é o abandono.
Criminalizar o pancadão é criminalizar a juventude periférica. É negar a ela o direito à arte, ao lazer e à voz. É fingir que o problema está na batida e não no silêncio das políticas públicas. A CPI dos Pancadões é um show de horrores, mas o maior horror é o desvio de foco. Porque o baile não é o inimigo. O baile é o espelho. E o que o Estado teme ver refletido seu próprio fracasso.